Tragédia Crossdresser, uma crônica de Simone Núñez Reis

O ELEMENTO CÚMPLICE DA SEXUALIDADE

Tragédia crossdresser

O escrivão mordeu os lábios e segurou o riso diante daquela figura vamp-cafona que soletrava com voz irritante seu nome batismal:

— C.a.m.é.l.i.a L.e.o.c.á.d.i.a M.a.r.t.i.n.e.z! – bradou a mulher, em alto bom tom, ao perceber que era observada por outros policiais do distrito.

Após responder às perguntas, despediu-se acenando o braço roliço para o escrivão sessentão.

Na porta da delegacia, sentiu desejo de beber uma taça de café. Alguns metros do local, com o scarpin apertando-lhe os pés, ajeitou o laço verde no cabelo, diante do enorme espelho da padaria.

Depois de acomodar seu enorme quadril atrás do balcão azul, quase histérica cruzou, descruzou as coxas grossas por inúmeras vezes.

Em vãs tentativas de atrair os olhares masculinos ao seu redor, Camélia era dona de um rosto meigo, com traços delicados, emoldurado por loiros cachos.

Ao testar seu menu de caras e bocas endereçadas ao garçom, sentiu um aperto no peito. Fantasiou então, que beijava o escrivão, sem poder imaginar que ele achou Camélia parecida com a vedete dos filmes de pornochanchada da década de 50, Wilza Carla.

Passados os pensamentos fantasiosos, uma bandeja portando a xícara acompanhada de guloseimas ancorou em frente ao busto farto de Camélia.

Marcado com um decote em formato V, os seios de Camélia pareciam que iam pular para fora, enquanto mordia faminta a empada. Lambendo lábios e dedos com certo nervosismo, Camélia recordou do cliente que infartara em sua cama.

Assíduo, o homem que dizia se chamar Ronaldo não fumava, tampouco pronunciava palavrões, mas incorporava uma espécie de entidade travesti após consumir algumas taças de vinho de maçã.

Ousado, Ronaldo pedia para vestir as lingeries de Camélia. Gostava de rabiscar trechos de blues americanos em guardanapos de papel.

Trôpego ao andar, sobre os saltos de plataforma dourados de Camélia, Ronaldo dublava Blue Moon de Billie Holliday enrolando-se na cortina cor-de-rosa da janela. Apelidado de cavalo-marinho por Camélia, Ronaldo era casado, pai de dois filhos e dirigia um conceituado hospital na cidade.

Mas o interrogatório policial daquela manhã deixara Camélia confusa.

A cada gole de café, a meretriz ia recompondo-se do susto, diante daquela morte inesperada. Mais tarde, retornaria ao bordel para atender a clientela agendada naquela noite.

Antes de pagar a conta do café, por instantes sentiu o perfume adocicado de Ronaldo como nos últimos encontros. Costumeiras, as sessões de fetiche-crossdresser aconteciam sistematicamente em horários de almoço.

Sem pensar que poderia ser o último, Camélia auxiliou Ronaldo a colar suas unhas postiças, atarrachou seus brincos e passou-lhe batom fúcsia nos lábios escondidos sob o bigode e blush nas pomos da face.

Alérgico às perucas, Ronaldo tinha longos orgasmos ao penetrar Camélia de cintas-liga e espartilhos. Muito além de uma química forte, o travestismo era o elemento cúmplice que conectava a sexualidade profana daqueles amantes.

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Produzido por Simone Núñez Reis na Oficina Literária da escritora e jornalista gaúcha Cintia Moscovich

6 comentários em “Tragédia Crossdresser, uma crônica de Simone Núñez Reis

  • 15 de maio de 2013 em 01:05
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    Grande SImone! Achei o texto muito espirituoso e fiquei honradíssima com a dedicatória. Voltamos às aulas na segunda, flor querida!

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    • 15 de maio de 2013 em 19:38
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      Lindona, nos vemos na próxima aula então…saudades da tua espirituosidade! e bom humor!

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  • 8 de maio de 2013 em 15:46
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    Meu emocionado agradecimento aos fofos do Matéria Incógnita, espaço que acolhe nossa idéias com respeito e profissionalismo ímpares! Cada vez mais sucesso para vcs gurissssssss medonhos!

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  • 8 de maio de 2013 em 15:43
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    Dedico este humilde exercício literário à minha mestra…a melhor de todas escritoras…Cintia Moscovich….bjks e Shalommmmmmmm!

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