Big Brother Brasil da Globo é uma tragédia de mortos-vivos

“Ainda não somos capazes de entender que a pior tragédia na vida de um ser humano é aquilo que morre dentro dele enquanto ainda está vivo”

Do blog A Cachaça da Happy Hour (publicado em 23/03/2010)

BIG BROTHER BRASIL – A QUINTESSÊNCIA DA FRIVOLIDADE

Por Washington Araújo *

Nos últimos dez anos, o canal de maior audiência da TV aberta no Brasil exibiu durante 900 noites seguidas a atração Big Brother Brasil.

Em outras palavras, a TV Globo passou mais de dois anos transmitindo, de forma ininterrupta, o programa que segue o formato criado em 1994 pelos holandeses Joop van den Ende e John de Mol, nomes que deságuam na ora famosa marca Endemol.

No conjunto, são dois anos e meio falando de prêmio de dinheiro graúdo. R$ 500 mil, R$ 1 milhão, R$ 1,5 milhão. E também de anjo, monstro, liderança, paredão, eliminação.

E tome Pedro Bial pontificando, filosofando, misturando superego, mito do herói, arquétipo e inconsciente coletivo, Brecht e Paulo Coelho, Maiakovski e Paulo Leminski, Renato Russo e Bob Dylan, arrematando tudo com a manjada moral da história extraída possivelmente dos contos da lavra dos irmãos Grimm.

O BBB é mais atração que programa. Programa tem algum tipo de encadeamento, de estrutura enquanto atração: tem pouco de previsibilidade, a “coisa em si” é o que capta os sentidos da audiência. Há a ilusão da imprevisibilidade. Apenas ilusão, porque o que vale mesmo é a realidade fabricada ali na mesa de edição; é ali que se constroem os mocinhos e os bandidos, os “cabeças” e os iletrados, o éticos e os aéticos.

Contrariando a máxima de que homem algum é uma ilha, o BBB termina sendo a própria ilha a ter como mar suas paredes e o tempo todo é desperdiçado com conversa, namoro, intriga, ginástica, bebedeira. No entretempo, os super-heróis do Bial se digladiam para eliminar os outros e vencer.

E é o vale-tudo: fazem alianças, traem, simulam, dissimulam, enfim, tentam se aproximar do Santo Graal, aquele objeto de desejo agora representado pelo cheque de R$ 1,5 milhão.

Quem está ali se depara com o dilema da modernidade: se tornará celebridade instantânea ou retornará ao anonimato. Ser celebridade, mesmo que por poucos dias, parece conceder um sentido à vida desses participantes; e renunciar aos holofotes deve, em sua estima, equivaler simbolicamente à própria morte.

Em volta da piscina

Concordo com o ótimo poeta brasiliense Gustavo Dourado. E, de sua autoria, compartilho os bem-humorados versos:

“É um joguete da mídia:/ De lucro comercial…/ Os bobos no telefone:/ Escravidão digital…/ A mando do Grande Irmão:/ Que acumula o vil metal…/// Loteria de milhões:/ Os bundões em evidência…/ Decadente baixaria:/ Em busca de audiência…/ Programinha indecente:/ Que está na repetência…”

É aquele desfile de corpos sarados – na maioria dos casos – com mentes vazias. Gigantes materiais e pigmeus éticos. Muita futilidade, caras e bocas, mau caratismo explícito, atentados ao pudor e à língua pátria, preconceitos raciais e sociais de todos os matizes.

O voyeurismo estimulado pela atração supera e muito o interesse e curiosidade com que visitantes param em um zôo para observar a jaguaritaca, o filhote de anta e o urso polar, a girafa ou o flamingo.

O programa de maior audiência da televisão brasileira é a versão moderna de um zoológico, onde em vez de observar animais observamos do que são capazes semelhantes nossos trancafiados em uma jaula com aparência de casa, com jeito de casa.

Ninguém joga pipoca nem banana, mas a atenção é concentrada: em determinada noite da semana se contabilizam formidáveis dezenas de milhões de ligações telefônicas jogadas na jaula em forma de casa com o nobilíssimo intuito de sensibilizar os administradores do zôo para que expulsem da casa – em forma de jaula doméstica – este ou aquele participante.

Em pleno verão carioca, sempre no período de janeiro a março, sabemos na edição noturna os que ficaram papeando na piscina ou desmaiados em volta desta, sempre em trajes sumários, sumaríssimos. E os instintos estarão, quase sempre, à flor da pele.

E isso me faz lembrar os jacarés do papo amarelo, aquela espécie de jacaré que habitava rios, lagos e brejos próximos ao mar, desde o Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul e na bacia do Rio Paraná, chegando até o Pantanal. É que ali já estiveram trancafiados gente de quase todos os estados brasileiros. Largados em volta da piscina colocando em dia seus papos amarelos. E põe amarelos nisso.

A verdadeira natureza

Todos parecem desfrutar do mesmo DNA do Pedro Bial: belos, sarados e afinados com essa cultura de frivolidades de que a atração é seu fruto mais maduro e consumido.

Quando Bial surge na tela com seus jargões pomposos – meus heróis, meus ídolos, tripulantes de minha nave, habitantes da casa mais vigiada do Brasil, meus mais-mais – os participantes dão uma última retocada no visual, uma nova cruzada de pernas, e como integrantes de bem ensaiado coral capricham no sorriso e retribuem o desejo de boa noite.

Bial não consegue disfarçar seu encantamento com aqueles espécimes humanos, fala como se Oráculo fosse e tem a plena convicção que jamais – jamais! – será contraditado ou contrariado por quaisquer deles – e não importa quão infamante seja seu gracejo ou quão estúpidas as observações a ser proferidas em tom ora solene ora galhofeiro.

E todos sabem que agradar o Bial é o mesmo que aparecer bem nas casas de milhões de telespectadores.

Mas nem tudo está perdido. O Big Brother Brasil está a merecer estudo sociológico. A casa-jaula assemelha-se também a uma gaiola de hamsters (aqueles pequenos roedores brincalhões).

São 80-90 dias de cativeiro, privados de intimidade, alvos de simpatia e da antipatia de uns e de outros, do ciúme e da inveja de uns e de outros, com tanto tempo ocioso e pouco afeitos à atividade de pensar, talvez acreditando piamente que pensar enlouquece.

Como hamsters, têm acesso à roda gigante: festas no sábado, gincanas premiando o vencedor com carros 0 km, esforço físico colossal para fixar na mente dos telespectadores a marca do detergente que pode limpar tudo menos os lugares vazios, muito vazios de ideais e de sentido para a vida.

Do ponto de vista financeiro a atração é uma mina de ouro. Muito merchandising, pouco investimento.

Assim como é fácil de tratar o hamster e de o mesmo não necessitar de alimentação dispendiosa, a manutenção da casa do BBB é relativamente econômica. Eles mesmos são quem fazem a comida e esta precisa ser conquistada vencendo obstáculos. E agora o formato da Endemol inclui a existência da Casa Grande & Senzala – ou, como chamam seus participantes, a casa de luxo e o puxadinho.

Hamsters levam a vantagem de rapidamente conquistar a nossa simpatia com seu comportamento amistoso ao contrário dos heróis do Bial, que na maioria das vezes apenas revelam sua verdadeira natureza com o passar do tempo em cativeiro.

A maior tragédia

Nesta décima edição houve recorde de votos para eliminação de um participante: 92 milhões.

Pausa para alguns rápidos cálculos. Neste paredão recorde, caso 100% dos votos tenha sido transmitido por ligação telefônica, podemos calcular que as ligações renderam R$ 27,6 milhões – considerando o preço da ligação a R$ 0,30.

Agora… sim, sempre tem um agora.

Agora, vamos imaginar que a Rede Globo tenha feito um contrato “50% por 50%”, ou melhor, “meio a meio” com uma operadora de telefonia. Então, nesse único paredão a emissora carioca teria embolsado nada desprezíveis R$ 13,8 milhões. Toda essa dinheirama em um único paredão.

Acontece que em três meses a quantidade de paredões varia de 14 a 16. Portanto, seguindo certa mentalidade de nossos meios de comunicação, ante tamanho volume de dinheiro, algum desses empresários pensaria duas vezes antes de riscar de sua grade conteúdos que favoreçam e cultura e cidadania do povo brasileiro?

Outra constatação é que pensamentos egoístas e imagens preconceituosas dominam o programa ou, ao menos, a quase totalidade da edição do programa.

Os que se sentem acima da média – que, aliás, é muito baixa – avocam para si o atributo de serem elas mesmas, de serem sinceras em suas opiniões, de não estarem jogando pra platéia e que “dinheiro não é tudo na vida”. Para estes, os outros apenas vêm confirmar o pensamento de Jean-Paul Sartre de ser, os outros, o próprio inferno.

O Big Brother Brasil é autoexplicativo.

Mesmo quem diz que nunca assistiu consegue rapidamente formular opinião sobre o programa. Até porque é de longe fonte primária para o jornalismo de frivolidades – também conhecido como de entretenimento –, crítica de televisão e, na verdade, reedita o velho colunismo social dos jornais impressos.

Só que bem mais ao gosto dos dias atravessados que vivemos, com direito a pergunta em rede nacional em horário nobre tão instrutiva e recatada quanto: “Você é ativo, passivo ou ambos?” E a resposta de supetão: “Nessa idade, eu sou tudo”.

À sua maneira, os participantes se põem a conversar sobre tudo e todos, sobre tudo e nada. É uma pena que não consigam elaborar em 90 dias perguntas que façam a vida valer a pena.

Penso em busca de respostas para questões essenciais: todo mundo é corrupto ou depende das circunstâncias? Você toparia tudo – mas tudo mesmo! – por dinheiro? Todo mundo mente, faz intriga, é fofoqueiro, traíra ou X9? Existe algum ser humano que seja confiável quando há muito dinheiro em jogo? Por que tenho medo de lhe dizer o que eu sou?

É que ainda não entendemos que a pior tragédia na vida de um homem é aquilo que morre dentro dele enquanto ele ainda está vivo. Não preciso escrever mais nada, né?

* Washington Araújo, escritor e mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, na coluna TV em Questão, do Observatório da Imprensa.

* * *

Blog da Nívia de Oliveira Castro

4 comentários em “Big Brother Brasil da Globo é uma tragédia de mortos-vivos

  • 10 de fevereiro de 2011 em 11:42
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    Parabéns pela significativa contribuição à nação brasileira!
    A minha opinião é de que textos assim devem ser publicados em toda a mídia livre e democrática, aberta ao diálogo.
    Edito uma revista no segmento de Arte e Cultura (com muito humor), em Itajaí SC, e fazemos a nossa parte – uma pequena parte – procurando disponibilizar bom conteúdo, esperando melhorar a qualidade intelectual da nossa gente.
    Se alguém desejar conhecer a revista: http://www.sopadesiri.com.br
    Abraço

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  • 24 de março de 2010 em 14:23
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    eu si amarrei tb na imagem bbb tarja preta p/ saude mental… rsrsrs…

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  • 24 de março de 2010 em 13:11
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    Eu acho que é importante, sim, que tais análises sejam feitas, para que as pessoas, digamos, menos aparelhadas intelectual e culturalmente, sejam estimuladas a desenvolver um senso crítico e, assim, melhor formar um juízo de valor mais apurado.
    Da mesma forma que devemos sempre assistir ao Jornal Nacional, da TV Globo, não para obter informação correta (pois isso ali não tem), mas para ver até onde vai a cara de pau do A. Kamel e do W. Bonner nas tentativas de manipulação da opinião pública.
    Alguém já disse por aí que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Eu diria mais: é vigiar e contribuir espalhando o máximo que puder esse tipo de texto nas nossas mensagens eletrônicas. Parabéns a quem optar por essa participação cidadã.

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  • 24 de março de 2010 em 00:20
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    Não assisto big brother… mas para alguém que destesta como eu. Gastou bastante tempo observando e comentando o programa. Acredito que assistindo também. Uma dica se não gosta não comente que isso aumenta ainda mais a exposição da idéia desse detestável programa.

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