O príncipe rebelde que lutou pela igualdade entre homens livres

A SAGA DE KROPÓTKIN, NOBRE HUMANISTA

Pai do Anarquismo

Há mais de 100 anos um nobre humanista sonhava com um mundo não violento, sem o poder coercitivo do Estado e concebia a sociedade como uma cooperação voluntária e solidária entre pessoas livres.

Suas ideias foram espertamente transformadas pelas elites de vários espectros em sinônimo de anomia – ou bagunça, baderna e caos –, como a velha mídia costuma se referir hoje ao ativismo na internet.

O SONHO DA GRANDE UTOPIA NUNCA FOI TÃO ATUAL

Os ideais libertários daquele que é considerado o “pai do anarquismo russo”, o príncipe Piotr Kropótkin (1842-1921), não são menos atuais do que no século XIX.

Ao ouvirmos a palavra anarquia imediatamente muitos imaginam uma bandeira negra, um crânio com ossos cruzados e marinheiros bêbados os temíveis piratas.

Ledo engano, Kropótkin não pregava nada parecido com isso. Era um homem sério, um cientista. Além disso, abominava a violência com toda a força de sua alma.

Como muitos revolucionários russos do século 19, ele nasceu em uma família nobre e abastada e pertencia à elite. Seu pai possuía mais de 1.000 servos e três propriedades.

Kropótkin graduou-se no Corpo de Pajens, a mais seleta escola militar da Rússia e foi pajem pessoal do Imperador Aleksandr II. Diante dele se apresentavam as mais brilhantes possibilidades: ele poderia ter se tornado um general ou um ministro.

E NÃO É QUE FUNCIONAVA?

Mas o príncipe desdenhou tudo isso e voltou-se para a revolução. Depois de fartar-se de ler literatura ilegal, ele pôs um ponto final em sua carreira. Recusou um prestigiado serviço na guarda, rejeitou seu título de nobreza e partiu para o auto-exílio na Sibéria.

Durante a sua peregrinação em meio ao povo, Kropótkin convenceu-se definitivamente de que todo o mal é proveniente do Estado.

Nos lugares que a mão do Estado não alcançava, as pessoas viviam felizes, embora pobres, concluiu. Mas os cidadãos se auto-organizavam em comunidades e passavam muito bem sem pagar impostos e sem funcionários públicos e políticos para sustentar.

Quando esteve na Suíça, observou como se organizava a associação de relojoeiros. Não havia qualquer autoridade que a controlasse – no entanto, ela funcionava perfeitamente.

Aquela era uma verdadeira comuna anarquista da maneira como Kropótkin a concebia. Uma comunidade de pessoas livres que não trabalhavam sob coerção, mas por vontade própria.

Lá mesmo, na Suíça, ele ingressou na Primeira Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864), a mesma da qual também fazia parte Karl Marx.

RETORNO E METAMORFOSE

Kropótkin voltou do exterior como revolucionário convicto e começou a promover a propaganda revolucionária.

Era um hábil conspirador: apesar da polícia ter conhecimento de suas atividades, durante muito tempo não foi possível detê-lo. Ele se disfarçava constantemente, ora de estudante, ora de camponês, e trocava de esconderijos com frequência.

Um elegante jovem de óculos entrava em uma casa, mas quem saía dela era um camponês que vestia uma camisa de algodão e botas grosseiras. A metamorfose era absoluta.

Mas no final acabou sendo detido e ficou preso na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, uma das mais sombrias prisões russas. Passou dois anos atrás da grades e fugiu, algo inédito no local.

Príncipe russo

Partiu então para o exterior e lá continuou as suas atividades contra o Estado.

Passou a ter muitos adeptos, entre eles os que editavam um jornal com o título “Rebelde”, que faziam propaganda e até promoviam atos terroristas.

Kropótkin não tinha relação com os atos terroristas, mas era uma figura muito odiada. Por isso, acabava expulso de todos os países europeus em que ingressasse.

Na França, foi condenado a cinco anos de prisão. No entanto, Victor Hugo e outras pessoas famosas saíram em sua defesa, e a pena de Kropótkin foi reduzida para três anos, que ele acabou cumprindo.

ATRITOS E DESDÉM

Quando, durante a revolução de 1917, Kropótkin voltou à Rússia, imediatamente surgiram atritos entre ele e os bolcheviques.

A crueldade dos bolcheviques deixava estarrecido o velho anarquista. Por natureza, ele era um homem gentil e bondoso e não conseguia, de maneira alguma, aceitar o terror vermelho.

Ele concebia o anarquismo basicamente como solidariedade e assistência mútua. No entanto, ali estava sendo realizada uma guerra de todos contra todos.

“E foi para isso que eu passei a vida toda trabalhando sobre a teoria da anarquia?”, perguntou-se ele a Plekhanov, um dos mais antigos marxistas.

Plekhanov respondeu: “Mas eu também estou na mesma situação. Poderia eu imaginar que a minha pregação do socialismo científico conduziria a tamanho pesadelo?”

Kropótkin encontrou-se com Lênin e tentou persuadi-lo, pediu para que parasse com as execuções. Lênin apenas ria dele.

Naquela época, ninguém mais o levava a sério. Até mesmo o famoso anarquista Nestor Makhno, apesar de admirá-lo, considerava as suas ideias fora da vida real e “ultrapassadas”.

SEM MEDO DE SER FELIZ

Quando Kropótkin morreu, foi homenageado pelo governo soviético na qualidade de batalhador contra o “amaldiçoado regime czarista”. Ruas e até as cidades inteiras foram batizadas em sua homenagem.

No centro de Moscou, até hoje existe a estação de metrô Kropotkinskaia. Durante algum tempo existiu até o Museu Kropótkin, fechado no final dos anos 1930.

Também os livros de Kropótkin não eram publicados. O Estado soviético se consolidava, estava se tornando cada vez mais forte. E as ideias do anarquismo eram totalmente alheias a ele.

Mas o anarquismo revelou-se uma corrente surpreendentemente persistente. Enquanto houver um Estado, sempre haverá aqueles que lutam contra a sua opressão.

O famoso slogan “A anarquia é a mãe da ordem” não é tão absurdo se concebermos o ideário segundo Kropótkin – como uma magnífica utopia, uma estruturação ideal da sociedade, onde cidadãos conscientes trabalham visando benefício mútuo.

Sem chefes. Sem capatazes e supervisores. Simplesmente porque são pessoas boas e conscientes. Um belo quadro, embora inverossímil diante do modelo político e econômico dominante na atualidade.

Mas o grande sonhador, príncipe Piotr Alekseyevich Kniaz Kropótkin, acreditava que um dia tudo seria exatamente daquele jeito.

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