O cara mais azarado do mundo na crônica de Veríssimo

Cartum - náufrago azarado

Do blog BananaPost (em 06/12/2010)

O HOMEM QUE VIVIA ANEDOTAS

Por Luis Fernando Veríssimo *

— Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança.

— Compreendo.

— Na escola não conseguia prestar atenção em nada. Estava sempre pensando em mulher pelada.

— Espera aí. Você é…

— Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei anedota.

— Mas as histórias até que eram engraçadas.

— Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu. Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um psiquiatra.

— Não foi esse o médico que…

— É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira. Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.

— E aí você disse…

— Eu disse: “Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar figurinha erótica?”. Fiquei anos em tratamento… O senhor está rindo porque não foi com o senhor.

— Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue.

— Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.

— Por quê?

— Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque do carro para ver se tinha gasolina, e tinha?

— Foi você?

— Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir. Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que…

— Só que para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é ótima.

— Ótima porque não foi com o senhor.

— Desculpe. Foi horrível…

— Quando saí do hospital comprei uma motocicleta. Uma noite na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha entre as duas.

— E era um automóvel. Essa eu conheço.

— Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo. Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não podia pagar.

— E ele?

— Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.

— Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais?

— Está vendo esse relógio? Está na família há gerações.

— É uma beleza.

— No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me vendeu.

— Boa, boa. Quer dizer, triste, triste.

— Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era um refrigerador.

— Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.

— O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz não me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.

— Não posso me conter. É que você teve uma vida engraçada.

— Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de sádicas.

— Você tem razão.

— Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a dez mil metros de altura, ouviu-se uma voz que dizia: “Isto é uma gravação. Este avião não tem piloto. É dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com vantagem o controle humano. Não há com o que se preocupar. O sistema foi exaustivamente testado é absolutamente à prova de falhas, de falhas, de falhas, de falhas, de falhas…”.

— O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui?

— Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a Betty Friedan.

— Acho que já vi esse cartum.

— Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me matar. Não conseguia fazer nada certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na cabeça.

— E aqui está você.

— Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que dei um tiro para o ar. Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O senhor ainda está rindo!

— Meu filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu existem?

— Não, São Pedro. Por favor. Não!

— O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto em Copacabana, morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado.

— Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu?

— É que tinha os argentinos. Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.

* Saiba mais sobre Luis Fernando Veríssimo na Wikipédia

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