A teoria da evolução do sexo, na crônica de Veríssimo

O amor é cego - caramujo e caracol de durex

Do blog ECOnsciência

Sexo na Cabeça é mais uma deliciosa crônica de Luis Fernando Veríssimo sobre uma improvável “evolução do sexo” ao longo dos milênios. Como de hábito, não poderiam faltar aqueles engraçadíssimos e absurdos diálogos entre gêneros. Coisa bem comédia de costumes. E de quebra, Sexo na Cabeça ainda ganhou uma versão musical de Arthur de Faria & Seu Conjunto.

SEXO NA CABEÇA

Por Luis Fernando Veríssimo *

Lembro-me como se fosse há oito bilhões de anos.

Eu era uma célula recém-chegada do fundo do miasma e ainda deslumbrado com a vida agitada da superfície, e você era de lá, um ser superficial, vivida, viciada em amônia, linda, linda.

Nós dois queríamos e não sabíamos o quê.

Namoramos um milhão de anos sem saber o que fazer, aquela ânsia. Deve haver mais do que isto, amar não deve ser só roçar as membranas. Você dizia “Eu deixo, eu deixo”, e eu dizia “O quê? O quê?”, até que um dia. Um dia minhas enzimas tocaram as suas e você gemeu, meu amor, “Assim, assim!”. E você sugou meu aminoácido, meu amor. Assim, assim. E de repente éramos uma só célula. Dois núcleos numa só membrana até que a morte nos separasse.

Tínhamos inventado o sexo e vimos que era bom.

E de repente todos à nossa volta estavam nos imitando, nunca uma coisa pegou tanto.

Crescemos, multiplicamo-nos e o mar borbulhava. O desejo era fogo e lava e o nosso amor transbordava. Aquela ânsia. Mais, mais, assim, assim.

Você não se contentava em ser célula. Uma zona erógena era pouco. Queria fazer tudo, tudo. Virou ameba. Depois peixe e depois réptil, meu amor, e eu atrás. Crocodilo, elefante, borboleta, centopéia, sapo e de repente, diante dos meus olhos, mulher. Assim, assim! Deus é luxúria, Deus é a ânsia. Depois de bilhões de anos Ele acertara a fórmula. “É isso!”, gritei. “Não mexe em mais nada!”

— Quem sabe mais um seio?

— Não! Dois está perfeito.

— Quem sabe o sexo na cabeça?

— Não! Longe da cabeça. Quanto mais longe melhor! Linda, linda. Mas algo estava errado. Não foi como antes.

— Foi bom?

— Foi.

— Qual é o problema?

— Não tem problema nenhum.

— Eu sinto que você está diferente.

— Bobagem sua. Só um pouco de dor de cabeça.

— No caldo primordial você não era assim.

— A gente muda, né? Nós não somos mais amebas.

E vimos que era complicado. Nunca reparáramos na nossa nudez e de repente não se falava em outra coisa. Você cobriu seu corpo com folhas e eu construí várias civilizações para esconder o meu. “Eu deixo, eu deixo — mas não aqui.” Não agora. Não na frente das crianças. Não numa segunda-feira! Só depois de casar. E o meu presente? Depois você não me respeita mais. Você vai contar para os outros. Eu não sou dessas. Só se você usar um quepe da Gestapo. Você não me quer, você quer é reafirmar sua necessidade neurótica de dominação machista, e ainda por cima usando as minhas ligas pretas. O quê? Não faz nem três anos que mamãe morreu! Está bem, mas sem o chicote. Eu disse que não queria o sexo na cabeça, Senhor!

— Nós somos como frutas, minha flor.

— Vem com essa…

— A fruta, entende? Não é o objetivo da árvore. Uma laranjeira não é uma árvore que dá laranjas. Uma laranjeira é uma árvore que só existe para produzir outras árvores iguais a ela. Ela é apenas um veículo da sua própria semente, como nós somos a embalagem da vida. Entende? A fruta é um estratagema da árvore para proteger a semente. A fruta é uma etapa, não é o fim. Eu te amo, eu te amo. A própria fruta, se soubesse a importância que nós lhe damos, enrubesceria como uma maçã na sua modéstia. Deixa eu só desengatar o sutiã. A fruta não é nada. O importante é a semente. E a ânsia, é o ácido, é o que nos traz de pé neste sofá. Digo, nesta vida. Deixa, deixa. A flor, minha fruta, é um truque da planta para atrair a abelha. A própria planta é um artifício da semente para se recriar. A própria semente é apenas a representação externa daquilo que me trouxe à tona, lembra? A semente da semente, chega pra cá um pouquinho. Linda, linda. Pense em mim como uma laranja. Eu só existo para cumprir o destino da semente da semente da minha semente. Eu estou apenas cumprindo ordens. Você não está me negando. Você está negando os desígnios do Universo. Deixa.

— Está bem. Mas só tem uma coisa.

— O quê?

— Eu não estou tomando pílula.

— Então nada feito.

Mais, mais. Um dia chegaríamos a uma zona erógena além do Sol. Como o pólen, meu amor, no espaço. Roçaríamos nossas membranas de fibra de vidro, capacete a capacete, e nossos tubos de oxigênio se enroscariam e veríamos que era difícil. Eu manipularia a sua bateria seca e você gemeria como um besouro eletrônico. Asssssiiiim. Asssssiiiiim.

Um dia estaríamos velhos. Sexo, só na cabeça.

As abelhas andariam a pé, nada se recriaria, as frutas secariam. Eu afundaria na memória, de volta às origens do mundo (o mar tem um deserto no fundo). Uma casca morta de semente, por nada, por nada. Mas foi bom, não foi?

* Luis Fernando Veríssimo – Jornalista, escritor e humorista gaúcho, filho do mestre da literatura Érico Veríssimo.

Assista a seguir ao vídeo de Arthur de Faria & Seu Conjunto, interpretando Sexo Na Cabeça — sobre crônica de Luis Fernando Veríssimo.

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